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Agudização da crise socioeconômica e terremoto eleitoral na Argentina

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Só uma reorientação rápida e substantiva das prioridades políticas e eleitorais em favor dos setores populares poderia evitar outra dura derrota

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Por Emilio Taddei e Gabriel E. Vitullo*O terremoto eleitoral do último domingo na Argentina deixou dirigentes políticos, pesquisadores de opinião pública, analistas e acadêmicos sem a possibilidade de ensaiar qualquer explicação. Praticamente ninguém previu que nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO) o ultradireitista Javier Milei conseguiria o primeiro lugar, com 30% dos votos emitidos e grandes chances de repetir a façanha no primeiro turno da eleição, no mês de outubro, chegando assim ao segundo turno com boas probabilidades de conquistar a cadeira presidencial.Mas realmente, o resultado do domingo é tão inexplicável assim? Consideramos que há elementos de caráter estrutural e outros mais de tipo conjuntural que deveriam nos ajudar a entender o que aconteceu. Dentre os primeiros, sem dúvidas, a questão socioeconômica ocupa o primeiríssimo lugar. O governo do Maurício Macri (2015-2019) tem legado para esta e as próximas décadas uma dívida muito difícil de afrontar. Naquele que é o maior empréstimo do Fundo Monetário a um único país em toda a sua história, a Argentina encontra um sério condicionamento a toda possibilidade de uma política econômica minimamente autônoma. Um quadro que não tem sido enfrentado pelo atual governo. Muito pelo contrário: é notória a ausência de qualquer vontade política nos três anos e meio que Alberto Fernández leva na Presidência de promover um processo de redistribuição progressiva da riqueza, enfrentando as grandes corporações empresariais e pondo um limite às suas enormes ganâncias. Assim como é notória a incapacidade do atual governo de negociar em outros termos com o Fundo Monetário – ou até de sequer cogitar a possibilidade de repudiar a dívida. A escalada inflacionária, que se acelera com a desvalorização de 22% do dólar oficial decretada na segunda-feira pelo ministro da Fazenda e candidato à presidência pela União pela Pátria, Sergio Massa, agudiza o processo de empobrecimento da população. Todo o qual gera uma situação social explosiva e uma profunda revolta contra toda a “classe política” (incluindo aqui tanto o governo de Alberto Fernández quanto as principais lideranças do partido do Macri, até aqui principal oposição).A tais elementos agregam-se outros, de caráter – como dito – mais conjuntural e que se referem à própria dinâmica com que se desenvolveu a disputa eleitoral. Por um lado, temos um presidente ausente, com baixíssimos índices de popularidade e nula capacidade de liderança. Por outro, um candidato governista cuja política económica e social se reduz a gerir e tentar moderar (até agora sem sucesso) as duras exigências do FMI, sem formular medidas que possam realmente reduzir a inflação (uso do poder coercitivo do Estado para controlar custos, preços e margens de rentabilidade) e consigam uma recomposição salarial que atenda às necessidades das grandes maiorias. Ao que cabe adicionar ainda o erro tático de ter deixado correr solto o Milei, na expectativa de que este restaria votos aos candidatos macristas e, desta forma, dividiria o voto da direita e facilitaria a chegada de Massa em primeiro lugar. Erro semelhante ao cometido pelo lulismo em 2018, quando não se levou a sério a ameaça que representava Bolsonaro e se pensou que o PT teria maiores chances de trunfo caso disputasse com este o segundo turno da eleição presidencial, deixando atrás uma direita tradicional enfraquecida.Sem falsas ilusões nem qualquer otimismo ingênuo, vale assinalar que as chances de mudar o quadro em outubro são realmente pequenas. As escassas possibilidades de reverter rapidamente um resultado eleitoral que parece sombrio para a base governista residiriam na rápida implementação de uma política redistributiva forte e palpável, que recompusesse a renda dos trabalhadores formais e informais.Pode até que Massa consiga conquistar novas adesões entre os milhões de desencantados ou revoltados que não compareceram às urnas (mesmo num país como a Argentina, onde o voto continua sendo obrigatório). Porém, qualquer número seria insuficiente diante de uma direita e ultradireita que, somadas, alcançaram nas PASO quase 60% do universo de eleitores que compareceu a votar. Na hipótese pouco provável de que Milei não chegasse ao segundo turno, isto se deveria a que Patrícia Bullrich, candidata do partido do Macri e com um discurso fascistoide muito semelhante ao do primeiro, conseguisse ocupar seu lugar.Dada a gravidade da situação económica e social que o país atravessa, cabe também considerar cenários que vão além da dimensão eleitoral e das chances que a coalizão governamental tenha de captar novos votos e mobilizar os setores que se abstiveram de ir às urnas. A história democrática argentina das últimas quatro décadas e a interrupção do governo de Alfonsín em 1989 como resultado de uma crise hiperinflacionária induzida por poderes financeiros locais e internacionais permitem evocar, na atual conjuntura, o risco de um cenário semelhante, com o que isto implica para a própria continuidade democrática. Em que pese o voto castigo sofrido pelas candidaturas do partido do Macri, paradoxalmente este pareceria ser o grande vencedor das eleições do último domingo. Ele não só apoiou implicitamente a candidatura de Patricia Bullrich ao longo da campanha das PASO, quanto também parabenizou Javier Milei pela vitória, coroando com suas palavras um número significativo de gestos amistosos intercambiados nos últimos meses entre o ex-presidente e o candidato “libertário”. Macri, assim, aproveita o surpreendente resultado eleitoral para tentar reconstruir sua legitimidade política, ao se cacifar como um hábil articulador das figuras de Milei e de Bullrich, ambos expressão dos interesses dos setores financeiros locais mais concentrados e dos detentores estrangeiros e nacionais de títulos da dívida argentina, entre outros grupos do poder econômico. Não se pode, portanto, descartar que esses setores apostem em mobilizar o enorme descontentamento do povo e das classes médias atingidas pela crise econômica para forçar uma saída antecipada do governo de Alberto Fernández e assim legitimar uma “resolução” neoliberal fortemente autoritária para a crise.Ontem (15/08/23) o próprio Javier Milei declarou enfaticamente em uma entrevista na televisão: “estou pronto para assumir agora. Estou trabalhando como se tivesse que tomar posse amanhã [...] Isso já aconteceu antes. Aconteceu quando Alfonsín partiu seis meses antes. Tenho que estar preparado caso isso aconteça”. Essa afirmação, e outros sinais sobre as posições desestabilizadoras dos dois candidatos de extrema direita que circulam nas redes, constituem indícios suficientes para não descartar a hipótese de uma crise política alimentada por esses mesmos setores. Isto num cenário que não por acaso coincide com processos de desestabilização política em curso em outros países sul-americanos (veja-se, por exemplo, o que vem acontecendo no Equador, no Chile e na Colômbia). Sem dúvidas a concretização desse potencial cenário desestabilizador na Argentina também constituiria um duro golpe para as iniciativas do governo Lula de retomar e fortalecer os alicaidos processos de integração regional. Só uma reorientação rápida e substantiva das prioridades políticas e eleitorais em favor dos setores populares poderia evitar outra dura derrota, cujas consequências seriam catastróficas e de longa duração, não apenas para a Argentina, mas para toda a região.*Emilio Taddei é professor da Universidade Nacional de Lanús (Argentina); Gabriel Vitullo é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

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