O sucesso de uma pessoa preta pode ser uma ofensa racial à branquitude
Depois de Pitty compará-la ironicamente à Irmã Dulce, por causa de seus trabalhos assistenciais aos mais pobres, Beyoncé teve o seu trabalho artístico comparado ao da cantora Tracy Chapman, que fez sucesso nos anos 80 e 90 com a canção “Baby can I hold you”, pelo ator Pedro Cardoso, que manifestou a sua preferência pela artista noventista e questionou o enorme sucesso da atual diva do pop internacional. Obviamente, a polêmica se instaurou e o ator está tendo que lidar com as críticas ao seu texto, no qual procura entender os motivos de Beyoncé ser mais consumida do que Tracy. Uma das conclusões a que chegou o ator é a de que a pop star norte americana comercializa a sua vida pessoal juntamente com a sua arte, o que, ao meu modo de ver, não é uma análise equivocada. Porém, além de desnecessária, deixa escapar o mesmo incômodo de Pitty com o mega sucesso (questionável ou não) de uma mulher preta.
Quando a branca, nem tão talentosa e não menos midiática Taylor Swift veio ao Brasil, ela não suscitou postagens irônicas e críticas ao seu talento e comportamento pessoal. E olha que uma jovem de 22 anos morreu no meio do seu show, por conta de uma organização irresponsável e omissa com a vida dos seus fãs. E olha que ela seguiu fazendo shows no país mesmo após a morte dessa fã. E olha que o talento vocal de Taylor é bastante questionável e nem se compara ao de Beyoncé. Apesar de tais “contratempos”, nem Pitty, nem Pedro, se arvoram em alfinetá-la nas redes sociais. O pacto da branquitude talvez explique esse silêncio. E quero deixar claro que considero o Pedro Cardoso uma das mentes mais lúcidas entre os artistas brasileiros. Da mesma forma que considero Pitty uma baita cantora. Mas não posso me furtar de alertá-los quanto ao racismo estrutural contido em suas postagens. E também não acho que eles sejam racistas, mas acabam reproduzindo comportamentos racistas a partir da branquitude a qual pertencem.
A problemática envolvida na postagem de Pedro, é a comparação feita entre duas mulheres pretas, uma de sua preferência e a outra como objeto de seu questionamento. Comparar pessoas pretas, ou, até mesmo, confundi-las umas com as outras, é um dos lapsos do racismo naturalizado na sociedade. A ideia de que “todo preto se parece”, é mais uma maneira de desumanização da negritude sob a forma da insignificância pessoal dos indivíduos pretos. Afinal, no racismo estrutural preto é tudo igual. No entanto, a questão da comparação ainda pode ser pior do que a troca de identidade de pessoas pretas. Sobretudo, quando feita por alguém branco, porque sugere uma avaliação da capacidade dessas pessoas pretas, feita por um indivíduo cuja estrutura racializada considera superior étnica, social e culturalmente. Ao classificar, segundo o seu gosto, o trabalho musical de Tracy Chapman como superior ao de Beyoncé, Pedro Cardoso evoca os seus antepassados colonizadores e deixa subentendido que Tracy é bem-vinda na sua “casa grande”. Beyoncé não.
Declaração que se agrava quando ele julga o comportamento pessoal da intérprete de “Single Ladys”, considerando que a exposição da sua vida pessoal, ao contrário da discrição da personalidade de Chapman, seria o segredo do seu sucesso artístico e financeiro. Ou seja, reforça o estereótipo do “preto exibido”, indiscreto, que faz de tudo para aparecer, mesmo sem ter muito talento, segundo a sua opinião. Eu juro que acredito que Pedro não teve a intenção consciente de formular essa visão preconceituosa a respeito de Beyoncé, por ser ela uma mulher preta e de muito sucesso na atualidade. Mas sentir-se incomodado de alguma forma com o sucesso de pessoas pretas de grande destaque na mídia, é algo inerente à branquitude sistêmica. E tal incômodo se manifesta através de “avaliações” nem sempre criteriosas e coerentes ao perfil e à capacidade da pessoa preta em questão. Recorro à famosa carta de Willie Lynch, para abordar outro aspecto problemático desse tipo de comparação. O estímulo à rivalidade entre pessoas pretas a partir da validação de pessoas brancas.
Lynch orientava aos escravocratas do seu tempo que era necessário acentuar as diferenças existentes entre os escravizados, para mantê-los sob domínio. “Verifiquei que entre os escravos existem uma série de diferenças. Eu tiro partido destas diferenças, aumentando-as. Eu uso o medo, a desconfiança e a inveja para mantê-los debaixo do meu controle. Eu vos asseguro que a desconfiança é mais forte que a confiança e a inveja mais forte que a concórdia, respeito ou admiração. ”, ensinava ele. O mercador de seres humanos escravizados estabelecia como diferenças a serem exploradas, a cor da pele, os traços fenotípicos, a beleza, a idade, entre outras coisas. Possivelmente o talento e a capacidade intelectual desses escravizados, também eram usados como um fator de segregação entre eles mesmos. Partindo do princípio que tais diferenças eram estabelecidas por seus “senhores” brancos e “superiores”, os escravizados se sentiam beneficiados por elas e acreditavam estarem sendo aceitos por aqueles que determinavam os seus destinos. Os conceitos de “pretos de alma branca” e “pretos da casa” explicam tais comparações.
O fato é que Pedro Cardoso pode ter demorado um pouco mais do que os norte-americanos presentes na final do campeonato de futebol americano de 2016, para descobrir que Beyoncé é preta. Sua performance no Palco do Super Bowl com a canção “Formation”, cuja letra fala de racismo e violência policial contra os negros americanos, despertou a ira de muitos brancos que eram fãs de seu trabalho sob a alegação de que ela atacava a Polícia estadunidense e propagava discurso de ódio contra os brancos. E olha que aqui no Brasil, um dos países mais racistas do mundo, ela só veio divulgar o seu álbum e o seu filme. Imaginem se ela resolvesse falar de racismo por aqui? Alguém já disse que o sucesso é uma ofensa pessoal. E eu acrescento que se esse sucesso foi obtido por uma pessoa preta, a ofensa é racial. E a branquitude não costuma deixar isso barato.
A crítica de Pedro Cardoso, que deveria ser única e exclusiva à indústria do entretenimento e como ela escolhe os cases de sucesso nos dias atuais, se estendeu ao talento, trabalho e comportamento de uma mulher preta. O clímax da bola fora protagonizada pelo ator, foi encerrar o seu texto dizendo que “sem vender a vida, ‘Beyonces’ não venderiam tanto. ” Uma tentativa de “lynchamento” sutil através de comparações e argumentos que só evidenciam o tratamento que a branquitude costuma oferecer aos pretos e pretas que ela não aprova e não valida que tenham representatividade e sucesso. E olha que nós, pretas e pretos, além de nossas vidas, já tivemos nossas almas comercializadas pelos escravocratas - mesmo eles afirmando que não as tínhamos - sem recebermos um centavo em troca.
