Um mundo desorganizado
"Tenho muita preocupação com o mundo desorganizado que legamos às nossas netas e com o esforço que meus filhos terão de fazer para educá-las"
Em breve serão duas netinhas lá em casa. A Isabela, que em breve fará um aninho, ilumina nossos dias com gargalhadas e sorrisos definitivos, e a Clarice, que chegará no finalzinho de abril ou começo de maio, dará ainda mais sentido à nossa caminhada.
Penso muito na responsabilidade que acompanha a paternidade desde que minha avó Maura reuniu histórias num livrinho e escreveu na dedicatória: “Dos filhos que Deus me deu, todos eles eu criei, das graças que recebi, das amarguras que passei, tudo agradeço a Deus e neste pobre livrinho, deixo a vocês o meu carinho”. A expressão “todos eles eu criei”, orientou o meu comportamento enquanto pai, pois deixa claro o tamanho da responsabilidade de ser pai.
Faço essa introdução para dizer que tenho muita preocupação com o mundo desorganizado que legamos às nossas netas e com o esforço que meus filhos terão de fazer para educá-las.
Vou explicar.
Minha geração cresceu num mundo em que os valores da solidariedade e fraternidade eram regra, forjados em casa, na escola, na igreja e nos diversos espaços de convivência e interação, mas as coisas mudaram muito, relações solidárias e fraternas não são mais a regra, nem são muito valorizadas.
Temos três filhos e procuramos educá-los valorizando: respeito, tolerância, empatia, honestidade, lealdade, responsabilidade e solidariedade; procuramos ensiná-los a importância da igualdade, fraternidade, equidade e a defender as liberdades; a respeitar as diferenças e a pluralidade de opiniões e religiosa; somos antirracistas, por isso, procuramos ensiná-los que o preconceito é algo negativo, que deve ser combatido em cada um de nós e denunciado quando ocorra na sociedade; e, como somos filhos do Concilio Vaticano II, a nossa opção é pela justiça social, o que, segundo São João XXIII, só ocorre através da democracia.
Esses são valores irrenunciáveis.
Contudo, a partir dos anos 1990, o liberalismo (ou neoliberalismo) passou a nos dizer, de forma inicialmente subliminar, que o importante é o ‘progresso financeiro individual’, o consumo, o “ser feliz”, que Deus mora no mercado e todo o mal no Estado; essa nova pauta deixou de lado as preocupações com a ética que conhecíamos e colocou os valores acima citados em segundo plano, até a democracia passou a ser relativizada.
Sem que percebêssemos a lógica neoliberal aliou-se às teologias da prosperidade e do domínio, desorganizando o mundo, transformando-o num campo de batalha, onde interesses e certezas montam exércitos, cujas armas são a agressão verbal e física, a desqualificação do outro para afirmação de seus projetos (como são perigosos os interesses ocultos e as certezas e quantas indecências escondem).
Um exemplo da “batalha pelo sucesso individual” está na transformação do ensino médio – que deveria ser um tempo de descobertas, experiências e amores eternos -, em obsessiva preparação para o vestibular, para o mercado de trabalho (ou seja, é o mercado e a lógica liberal apropriando-se da adolescência); outro exemplo da desorganização do mundo é a intolerância, parece não haver mais espaço para o debate. O paciente leitor deve estar se perguntando: “mas que diacho de miscelânia... qual a relação dos valores citados, da educação dos filhos, com as netas e com o neoliberalismo?”.Respondo: acreditamos que nossos filhos terão mais trabalho para educar suas filhas do que nós tivemos, porque no mundo - agora pautado pela lógica do mercado, do consumo e pelas teologias da prosperidade e do domínio -, as relações e interações humanas passaram a ser: líquidas, voláteis, individualistas, egoístas, impessoais, sem empatia e até antidemocráticas; desorganizaram-se todas as esferas da vida social: o amor, a cultura, o trabalho etc.
Ou seja, minhas netas vão crescer num mundo desorganizado, individualista, egoísta; um mundo no qual, segundo Bauman, o indivíduo, sem os freios e parâmetros da modernidade sólida, não tem compromisso com a sociedade, não tem limites; um mundo onde o estilo de vida, o que consumimos e o modo que consumimos, é o que nos define, ou seja, o que nos define é a imagem que apresentamos nas redes sociais, não a realidade; é triste pensar que elas vão crescer num mundo de competição antiética, de concentração da riqueza, de lumpemproletarios, iludidos com rotulo de “microempreendedores”; um mundo em que a verdade tornou-se irrelevante e as versões, ou narrativas, fragmentadas e difundidas através de aplicativos de mensagens instantâneas, corroem a criticidade das pessoas.
Se meus filhos pedirem um conselho sobre com educar suas filhas eu direi a eles: caminhem sempre pela estrada da verdade, é mais seguro; ouçam suas filhas, riam das coisas bobas com suas esposas e filhas; não comprem roupas caras; cultivem coisas antigas como: a lealdade, justiça, generosidade, honestidade, fidelidade, respeito, tolerância, empatia, responsabilidade, amizade, solidariedade e amor; ensinem suas filhas a importância divina da busca pela igualdade, fraternidade, equidade e a defender as liberdades, assim como o respeito às diferenças e à pluralidade; ensine-as a respeitar a diversidade religiosa; a serem antirracistas, façam delas democratas e as afastem de todo tipo de preconceito.
Não esqueçam de onde vieram, não se afastem das coisas simples, por isso: levem as meninas caminhar em Sousas e Joaquim Egídio; a passear no centro da cidade; tomem “vitamina mista” no coretinho da Doutor Quirino; caminhem no lago na Hípica, brinquem no parquinho e desçam no tobogã da piscina nos verões; levem-nas ao Taquaral “andar” de pedalinho, ao Bosque, ao mercadão e ao mercadinho da Barão; à sinfônica; às feiras livres para comer pastel, beber caçulinha e sentir todos aqueles aromas; leve-as ao Majestoso assistir os jogos da Ponte Preta; leve-as à missa aos domingos, mas escolham padres progressistas; não tenham medo de dizer “não” a elas, mesmo que elas chorem; contem histórias e assistam filmes; passeiem de mãos dadas e tenham paciência no shopping durante as compras e, principalmente, não procurem viver vidas “instagramáveis”, a vida real é muito melhor.
E não tenham pressa, pois, com ou sem ela, o dia tem vinte e quatro horas.
Essas são as reflexões.
Pedro Benedito Maciel Neto, 60, advogado, pontepretano e avô; sócio da www.macielneto.adv.br – pedromaciel@macielneto.adv.br